Comida ritual
Ao pesquisar a antiga culinária mineira, escritora resgata histórias e alimentos servidos em velórios
Texto Janice Kiss | Fotos Roberto Seba

Não era para ser um livro sobre comidas de velório das Minas Gerais. Déa Rodrigues da Cunha Rocha pensava em uma publicação sobre receitas mineiras, daquelas feitas em fazendas, que estavam se perdendo por falta de execução e de registros. Ela mesma tem um porção delas, passadas entre gerações e que estão guardadas só na cabeça – e com jeitinhos especiais de fazer. Durante dois anos, Déa muniu-se de gravador, bloco e caneta para não perder nada em suas andanças e conversas com amigos, parentes e conhecidos pelo centro-oeste mineiro. Nesse resgate da culinária do passado, sempre deparava com relatos de causos e lembranças de quitandas servidas durante as noites em que se velava o morto.
Por causa dessas histórias tão recorrentes, ela decidiu batizar o livro de Os comes e bebes nos velórios das Gerais e outras histórias (Auana Editora, R$ 30). Encontrou resistência dos mais próximos, que julgaram o assunto tétrico demais. Déa reconhece que é um trabalho inusitado, mas afirma que trata-se de documentar um hábito legítimo de áreas rurais e de pequenos municípios do país. “As pessoas têm o costume de varar a noite nos velórios, e muitas delas se deslocam de cidade para cumprir esse ritual”, explica. Déa foi recompensada por não ter aberto mão de sua convicção. No ano passado, ela levou a terceira colocação na categoria contos e crônicas do Prêmio Jabuti, a mais importante premiação literária do país. “Quase empacotei quando recebi a notícia”, brinca.
As 18 histórias e 21 receitas contidas no livro ultrapassaram as fronteiras de Minas Gerais e tornaram conhecido o “cardápio de velório”. Bolos, broas, pão de queijo, roscas para tomar com café, ambrosia, licores e comidas substanciosas, como lombo de porco com mandioca e queijo e caldo de feijão. “Os amigos vão passar a noite ali, como um sacrifício em nome da amizade. A gente tem de lembrar que passar a noite acordado sem comer nada também é meio custoso, né?”, diz. Os causos são dos mais variados: falam de gente que saiu da capital, Belo Horizonte, para não ser enterrada em cemitério vertical, do marido que morreu com vontade de comer ambrosia preta, da viúva que não chorava, de túmulos emprestados, etc. Nomes e localidades foram trocados para preservar a identidade dos envolvidos. “Quis contar histórias engraçadas para avacalhar um pouco com a morte. E mineiro é assim mesmo: o fulano está morrendo e já tem alguém na roça atrás de uma galinha para a canja”, conta.

Déa recebeu muitos elogios, lançou a publicação nas melhores livrarias, fez muita gente rir da tristeza e ensinou um pouco da tradição da culinária mineira. Todas as receitas foram testadas com o amigo Geraldo, antigo cozinheiro da fazenda em que morava. Foi preciso transformar medidas como “prato fundo” em gramas, explicar que o pão de queijo mais gostoso é feito com polvilho azedo e que o forno “tem de estar tinindo na hora de assar”.
A escritora já tem quase pronto outro livro, desta vez sobre histórias de amor, com chás antigos e simpatias de sua terra. A editora pressiona pela entrega, mas Déa não sabe se consegue finalizar até o final do ano. “É que eu não tenho disciplina, odeio rotina”, confessa. Por conta dessa sua inquietação, ela foi cursar a faculdade de Direito aos 70 anos. Como boa parte das mulheres de sua geração, Déa se formou em letras. Mas jamais admitiu se limitar ao papel de esposa e mãe de três filhos. Com o marido, Heitor, cuidava dos negócios da fazenda de gado em Uberaba, no Triângulo Mineiro. Passou a viver na capital paulista há três anos, quando vendeu a propriedade, após a morte do esposo. “Senti um profundo aperto no coração. Mas como eu ia tocar aquelas terras sozinha?”, pergunta-se. Seu conforto foi ter escolhido o futuro proprietário, conservacionista como ela. Déa conta que deixou intocada uma área de aroeiras vizinha ao Rio Uberaba, fez corredores ecológicos, tudo em uma época em que a defesa do meio ambiente ainda não estava na pauta do dia. “As fazendas da região foram invadidas pela cana-de-açúcar, e eu reprovo a monocultura. O que só reforçou meu desgosto em permanecer por lá.”
Mas a casa paulista de Déa é mineira, com móveis de fazenda, um pomar de dar gosto e uma horta que tem de tudo – alface, quiabo, jiló, couve e outras hortaliças. “Moro na capital, mas não quis abrir mão do jeito de viver no campo”, diz. No entanto, ela dispensa a rotina tranquila dos lugares pequenos. No ano que vem, quando completa 80 anos, pretende voltar a estudar. Vai tentar jornalismo, um sonho antigo. Os filhos pedem em vão para ela sossegar um pouco. “Eles sabem que eu levo a vida assim, maluquinha de tudo”, confessa.
Serve: 10 porções | Tempo: cerca de 40 minutos | Dificuldade de preparo: fácil

INGREDIENTES
2 xícaras (chá) de mandioca crua ralada
250 gramas de queijo minas ralado (ou coco ralado)
1 xícara (chá) de açúcar
2 colheres (sopa) de manteiga
1 colher (sopa) rasa de fermento em pó
4 ovos
COMO FAZER
Primeiro, bata as claras em neve. Junte em um recipiente a mandioca, as gemas e os demais ingredientes. Adicione as claras por último e mexa. Transfira a massa para uma assadeira untada com manteiga e farinha ou para forminhas individuais. Asse em forno pré-aquecido (180 ºC) por 30 minutos ou até o bolo passar no teste do palito – sai limpo quando a massa estiver bem assada. O bolo fica parecido com um bombocado.
Serve: 10 porções | Tempo: cerca de 1 hora | Dificuldade de preparo: fácil

INGREDIENTES
2 litros de leite
4 xícaras (chá) de açúcar cristal
8 ovos
pau de canela
COMO FAZER
Leve ao fogo baixo uma panela grande com o leite, três xícaras de açúcar e a canela. Deixe ferver até engrossar um pouco, mexendo de vez em quando. Enquanto isso, separe as gemas e bata as claras em neve. Depois, junte as gemas e torne a bater bem. Despeje na panela do leite quando tiver engrossado. Prepare uma calda de açúcar queimado (usando a xícara restante de açúcar), adicione ao leite e mexa devagar. Ela é que dará a cor “morena” ao doce. O ponto certo da sobremesa é quando o gosto do ovo desaparece por completo.
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